O Pastor e o Cão da Serra da Estrela
O pastor era um homem muito especial. Homem com uma personalidade misteriosa… Toda a sua vida era feita de amor e devoção pelo rebanho que guardava. As noites eram de permanente insónia, quando os lobos esfomeados espreitavam ansiosos uma oportunidade para saltarem sobre as suas vítimas. Fazia vigílias constantes em alta madrugada quando o calor apertava, para chegar primeiro ao bebedouro ou a qualquer outro local onde existia um lambisco que as ovelhas apreciavam.
Muitas eram as longas caminhadas de borregos ao colo debaixo de chuva ou da neve. Na serra passava o pastor todo o verão, isolado, comendo pão de centeio que de quinze em quinze dias lhe levavam e bebendo o leite que diariamente ordenhava para a sua ferrada que servia, também, para nela cozer as batatas. A gordura ou conduto trazia-a num corno de boi, tapado a cortiça e atado à cintura. O pastor vestia pelica, safões de pele de ovelha, capa ou manta, botas brochadas e garruço ou chapéu. O pastor era ágil e frugal. Tinha como utensílio o cajado para descanso, apoio e defesa. O cajado era sempre objeto de estimação, chegando a ser legado em testamento.
Ao voltar da transumância, o pastor trazia sempre muitos cajados de lódão, para ornamentar e depois oferecer a pessoas de estimação. Na decoração do cajado de carvalho a navalha funcionava como instrumento único. Quanto ao cajado de castanho outros elementos entravam na sua ornamentação: a varela era cortada ainda verde e sobre a casca, a ponta de canivete, eram feitas incisões de acordo com os ornamentos desejados. Depois, era levada ao forno ou deixada no caniço. O calor enfarruscava a parte golpeada. O resto da casca era-lhe tirada por fim e o cajado, assim tratado, ostentando ricos contrastes a preto e branco constituía o orgulho do pastor.
Os companheiros inseparáveis do pastor eram os cães da raça Serra da Estrela, com quem não temia enfrentar os lobos e os ladrões de gado. Dois dedos na boca e um assobio agudo ecoava pelas quebradas, juntando o gado, quando o perigo ocorria. O cajado no ar e o alarido dos cães intimidavam a mais ousada e faminta alcateia.
O Cão da Serra da Estrela vem, através dos tempos, impondo a sua eficácia como garante da segurança e tranquilidade no pastoreio. Essencialmente cão de gado, a sua função era exercer ao longo das vinte e quatro horas uma constante e rigorosa vigilância, denunciando, de forma rápida e oportuna, a aproximação de estranhos. É um animal rústico, bem entroncado, de pelo curto ou comprido, com viveza de andamentos e imponentes atitudes. Olhar vivo, calmo e expressivo. Respeitável pela sua poderosa agressividade para com os estranhos e de uma docilidade característica junto do pastor. O Cão da Serra da Estrela usava uma coleira de picos de ferro como proteção na luta contra os lobos.
O pastor de antanho tinha grande dificuldade em suster os ataques dos carnívoros ao seu rebanho.
Eram os cães que acompanhavam o pastor que tornavam possível os rebanhos pastar em terrenos que seriam perigosíssimos sem a sua presença protetora. Também nas suas longas caminhadas transumantes, para onde o gado ia no inverno em busca de alimento para locais muito distantes, eram os cães os seus companheiros inseparáveis e zeladores.
Esses cães, guardiões dos únicos bens de muitos dos seus donos tinham de ser vigilantes, argutos, valentes e resistentes. Foi assim que, ano após ano, século após século no desempenho de tão árduas e perigosas tarefas, no estreito convívio com o homem pastor, surge, a apreciada raça cão da Serra da Estrela.
A raça Cão da Serra da Estrela teve o seu solar primitivo aqui nesta serra e perde-se no tempo a sua origem. A primeira referência aos antepassados dos atuais cães desta raça encontra-se na descrição da oposição feita aos Romanos pelos Lusitanos no século II antes de Cristo, em que se diz que estes se faziam acompanhar de grandes, fortes e valentes cães.
O pastor nada temia, a não ser as tempestades, de que se escondia num abrigo de qualquer fraguedo. Onde o dia quedava, aí pernoitava, tendo por vezes, sítios conhecidos onde melhor passava a noite. Só então descansava um pouco, aquecendo-se ao lume, tocando flauta, ceando e recostando-se depois. Confiava aos cães o acordar do seu sono leve, se houvesse perigo.
Bibliografia
Fragmentos do Passado – Manteigas nas décadas de 1950 e de 1960, Nataniel Rosa, 2016